“Sapatada”, por José Saramago

Pronunciamento de Saramago sobre a sapatada do jornalista iraquiano em George W. Bush, o incompreendido.

O Golpe Final

O riso é imediato. Ver o presidente dos Estados Unidos a encolher-se atrás do microfone enquanto um sapato voa sobre a sua cabeça é um excelente exercício para os músculos da cara que comandam a gargalhada. Este homem, famoso pela sua abissal ignorância e pelos seus contínuos dislates linguísticos, fez-nos rir muitas vezes durante os últimos oito anos. Este homem, também famoso por outras razões menos atractivas, paranoico contumaz, deu-nos mil motivos para que o detestássemos, a ele e aos seus acólitos, cúmplices na falsidade e na intriga, mentes pervertidas que fizeram da política internacional uma farsa trágica e da simples dignidade o melhor alvo da irrisão absoluta. Em verdade, o mundo, apesar do desolador espectáculo que nos oferece todos os dias, não merecia um Bush. Tivemo-lo, sofrêmo-lo, a um ponto tal que a vitória de Barack Obama terá sido considerada por muita gente como uma espécie de justiça divina. Tardia como em geral a justiça o é, mas definitiva. Afinal, não era assim, faltava-nos o golpe final, faltavam-nos ainda aqueles sapatos que um jornalista da televisão iraquiana lançou à mentirosa e descarada fachada que tinha na sua frente e que podem ser entendidos de duas formas: ou que esses sapatos deveriam ter uns pés dentro e o alvo do golpe ser aquela parte arredondada do corpo onde as costas mudam de nome, ou então que Mutazem al Kaidi (fique o seu nome para a posteridade) terá encontrado a maneira mais contundente e eficaz de expressar o seu desprezo. Pelo ridículo. Um par de pontapés também não estaria mal, mas o ridículo é para sempre. Voto no ridículo.

16/12/08,  José Saramago.

Texto extraído do Caderno de Saramago.

Abraço Fraterno,
Márcio N.

Ossétia / Rússia x Geórgia / EUA _apenas bombas

Passei parte do sábado impressionado com a guerra (veja as fotos), a primeira transmitida em tempo-real pela geração youtube, que segue assim: 1) Geórgia aproveita a atenção do mundo para as olimpíadas para bombardear e invadir a Ossétia do Sul, matando 2.000 civis em 1 dia: instaurada Lei Marcial, a Lei do Cão. 2) Rússia bombardeia a Geórgia, e continua explodindo jornalistas, casas e pessoas até que a Geórgia deixe a região da Ossétia do Sul: mais milhares de mortos, outras dezenas de milhares refugiados. 3) A Geórgia, parcialmente destruída, tem o pedido de cessar-fogo negado pela Rússia, que exige a retirada das tropas da Geórgia da Região da Ossétia, temendo um genocídio. 4) Os EUA acusam a Rússia de tentar depor o presidente Georgiano e oferecem apoio à Geórgia, que possui 20.000 soldados, enquanto, a Rússia, mais de 1 milhão.

Mais bombas não param de cair.
Protejam-se, em um bunker ou numa cova, se juntarem os pedaços.

Abraço fraterno,
Márcio N.

Música: “A Marcha das Valquírias” >> “‘The Ride of the Valkyries’ from Die Walkure by Richard Wagner performed by the Radio Filharmonisch Orkest Holland conducted by Edo De Waart” – do Youtube. Links: Vídeo do Dia 1 (Russia Today, 18’36”), Causas do Conflito (Folha), Inside The Story (Parte 1, Parte 2).

Censura na internet aprovada no Brasil _ a china é aqui

A imprensa oficial do Brasil me deixa cada vez mais puto.

Seguindo a pauta de jornais internacionais, os nossos se limitam a criticar a censura da internet na China, enquanto por aqui mesmo os senadores aprovaram uma lei idêntica. Alguns jornalistas até mencionaram o assunto, mas de forma tímida para não comprometer a audiência [uma das vantagens de ter um blog pouco acessado é não se preocupar tanto com o ibope]. E como não sou nem bundão nem jornalista [olha a redundância, Pasquale], decidi tocar no assunto:

Lei de Cybercrimes, aprovada às escondidas no Senado na noite de 9 de julho, obriga provedores a ceder todas as informações relativas a você. Que páginas acessa, o que escreve, o que lê, o que conversa, onde mora, o que faz, etc. Além do fim da privacidade, ela censura páginas, o acesso Wi-Fi público, comunidades de troca de arquivos, e por aí vai.

Trata-se de uma postura que parecia possível somente em países totalitários como China ou Cuba. Mas, ao que parece, o Brasil passa a integrar o seleto grupo de criminosos.

O que motivou isso.

Era fácil abafar um escândalo na redação de jornais oficiais, mas isso é impraticável em páginas informais na internet, onde não há qualquer controle do Estado. Eles têm medo e tomaram uma atitude covarde: anularam o poder individual do povo, pela exposição, e criaram para o Governo um escudo, que acaba com a possibilidade da pressão pública.

Faça algo a respeito: assine a petição que invalida a Lei de Cybercrime.

Abraço fraterno,
Márcio N.

Nos próximos dias, novas entradas nesse mesmo artigo.

10 ÷ 10 = 0,36 _matemática prato seco

Imagine a seguinte equação: você tem 10 laranjas e precisa alimentar 10 pessoas. O que faz? Resposta: 6 laranjas vão para o lixo e sobram 4 – disputadas no tapa. O brasileiro médio se permite desperdiçar 64% de todo o alimento produzido no país, o equivalente a 70 mil toneladas de comida indo ao lixo, todo ano, segundo relatório da FAO – Food And Agriculture Organization. Isso acontece porque o brasileiro não é bom em cálculo, quando a fome é um problema matemático. Se o brasileiro fizesse contas primárias, como avaliar o quanto deve colocar no seu prato, e com isso evitasse o desperdício, seria o bastante para começar a baratear o preço dos alimentos, reter consideravelmente a inflação e – com as coisas resolvidas por aqui – ainda sobrava uma parte para enviar aos hermanos na América Latina, onde 9% das crianças sofrem de desnutrição crônica.

Mas o cessar fogo não é assim fácil: a inflação vai continuar subindo, miseráveis vão continuar miseráveis e o cidadão médio vai continuar brincando com comida. Porque o brasileiro nunca foi muito de estudar: aprendeu plantar, mas esqueceu de aprender a contar.

Abraço fraterno,
Márcio N.

NOTA: A notícia acima veio à mídia no dia de hoje, mas não há muito aprofundamento. Acessando FAO – Food And Agriculture Organization você conhece este e outros estudos, confere o mapa da fome e se informa sobre como ajudar. Caso você esteja à procura de entretenimento rápido e não-engajado, brinque aqui com a sua comida.

Ernest Hemingway _122 assassinatos nas costas [pelo que deu para contar]

LEIA OU ATIRAMOS EM VOCÊ >> Neste artigo: caçada de humanos; cinema clássico; crimes de guerra de Ernest Hemingway (1899 – 1961); e dos perigos do cultivo de ídolos.

Fay Wray em cena de "The Most Dangerous Game" - mais tarde, o cenário seria usado em King Kong, dos mesmos diretores.

A caçada de humanos era um esporte muito popular para o Conde Zaroff, que em sua ilhota saía armado na procura por vítimas de naufrágios, no filme The Most Dangerous Game, de 1932. Foi talvez influenciado por esse roteiro, que Ernest Hemingway escreveu na revista Esquire, em 1936, um artigo com a seguinte frase: “Certamente nenhuma caça se pode comparar à caça ao homem, e quem caçou homens armado, por um longo período de tempo e com prazer, nunca mais se interessou por outra coisa depois dessa experiência“. Talvez não mentisse e quanto a isso, fazendo de sua afirmação um plot virtual de sua vida progressa em que executou dezenas de prisioneiros [122, pelo que contabilizou] durante a II Guerra. Mas existe uma diferença básica entre o Conde Zaroff e Ernest Heminway: enquanto o Conde, embora fortemente armado, ainda oferecia às suas vítimas arco e flecha para a defesa, o escritor e jornalista americano só lhes oferecia mesmo as balas na carne. Se ainda estivessem vivas, serviriam de prova da sua covardia as 122 pessoas assassinadas por ele à altura da Invasão da Normandia, na II Guerra Mundial, quando era Hemingway um jornalista integrante do exército americano na retomada de Paris pelas forças aliadas.

A revelação veio ao mundo por volta de 2006, a partir de cartas encontradas pelo jornalista alemão da Focus, Rainer Schmitz, quando realizava uma pesquisa sobre curiosidades, anedotas e histórias pouco conhecidas de escritores famosos. Foram encontradas 2 cartas, certamente comprometedoras, onde revelava o escritor os detalhes sobre suas atrocidades cometidas na guerra. Em uma delas, datada em 1950, foi enviada a Arthur Mizener, amigo e professor de literatura da universidade de Columbia, há a descrição de Ernest Hemingway sobre como alvejou por trás um “jovem soldado alemão que tentava fugir numa bicicleta e que devia ter a idade do meu filho Patrick”.

Ernest Hemingway posa ao lado de animal abatido. Seu esporte preferido era a caça.

Sabe-se que Hemingway sempre foi cuidadoso em cultivar uma imagem de homem bruto, rude e macho. Como, quando em uma das cartas, ele se gaba por executar um Kraut [chucrute], soldado alemão prisioneiro que haveria desafiado o seu poder citando a Convenção de Genebra: “Você não vai me matar, porque tem medo e pertence a uma raça de degenerados”, teria dito o alemão; Hemingway descreve como foi sua reação – “Você está errado, disse, e atirei três vezes, primeiro no estômago e depois na cabeça, fazendo cuspir seus miolos pela boca”. Além de executar prisioneiros, Hemingway poderia ter sido incriminado pelo simples fato de armazenar armas e granadas no seu quarto de hotel parisiense.

Na carta datada em 27 de agosto de 1947 ao seu editor Charles Scribner (1890-1952), o nosso amigo Ernesto do Rifle [como passou a ser conhecido em Cuba, onde morreu na ocasião de um suicídio com um tiro em 2 de julho de 1961] conta também como se sentia excitado pelos crimes: “sim, tive prazer em matar”. Prazer não, vício. Porque na carta de 1950 ele vai além: “Fiz alguns cálculos e posso afirmar com exatidão que matei 122 alemães”.

Antes da II Guerra, Ernest Hemingway adquiriu experiência em conflitos cobrindo, em Madrid, a Guerra Civil Espanhola. No fim da vida, teria em seu exílio voluntário em Cuba se prostituído à CIA por 500 dólares ao mês vendendo informações ao Governo Americano. O caso dos assassinatos é a mais recente descoberta sobre ele.

Essa não foi a primeira vez que um vencedor do prêmio Nobel de literatura teve sua imagem manchada por falhas cometidas em sua vida pessoal. Recentemente, na autobiografia “Descascando a Cebola”, Günter Grass revela ter feito parte da Juventude Hitlerista e integrado a tropa de elite da Waffen-SS, embora insista jamais ter dado um disparo sequer.

Agora, um minuto para uma mensagem pessoal.

Concurso de sósias de Ernest Hemingway, nos EUA

Deve-se anular qualquer possibilidade de ídolos, seja quem for, porque além de uma idiotice impessoal é também um negócio arriscado. Os rostos que estampam a maioria das camisetas não pertencem a canalhas menores que os anônimos que se encontra em qualquer penitenciária. John Lennon deserdou um filho e acumulou capital enquanto falava em um mundo sem possessões; Ernesto Che Guevara [Clichê Guevara] executou pessoas com a mesma indiferença com que coçava a perna; o maior difusor da maconha, Bob Marley, é suspeito de assassinatos e de envolvimento com o narcotráfico, e por aí vai, sempre descendo, até chegarmos a Ernesto do Rifle. Neste caso, seria prudente distinguir onde termina o escritor e onde começa o homem. O escritor poderia ter assumido sua culpa e de alguma forma se redimido, pois inteligência e sensibilidade não lhe faltavam. Mas o homem, esse não – optou por explodir os miolos, que é mais simples, e mais humano.

Veja, acima, a primeira parte da animação inspirada em “O Velho e o Mar”, de Hemingway.

Abraço fraterno,
Márcio N.

Leia sobre o tema no Estado de São Paulo. Além desse link não se pode encontrar muito em outros jornais do Brasil. O assunto ainda hoje soa como boato, já que pouca importância foi dada à revelação na imprensa brasileira – reconhecidamente, uma das piores do mundo.